Travessia na crise

Postado por: Ari Antônio dos Reis

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Estamos no início de uma travessia em meio à pandemia da “corona vírus” (COVID-19). Certamente está provocando os brasileiros a uma série de leituras da vida, da economia, da política e das relações sociais. Diante disso partilho algumas percepções.

Quanto a nossa vida lembro que, devido ao inusitado, do qual não temos domínio, a crise está eclodindo no advento do outono. Na Europa foi no final do inverno e, certamente, o desabrochar da primavera ficará marcado por esta grande dificuldade.  O outono é classificado como a estação que provoca a natureza a despir-se da “roupagem velha” (folhas) para entrar em dormência (inverno) e desabrochar para a vida nova (primavera). Não é um processo fácil ou tranquilo. Assumir processos de renovação é tarefa exigente para o ser humano e para as instituições, assim como é para a natureza. Nestes primeiros dias de enfrentamento da pandemia estamos, em nome da nossa sobrevivência, assumindo uma condição outonal em nossa vida. Estamos revendo alguns conceitos e valores e até mesmo nos despojando deles, assim como as árvores entregam suas folhas para a natureza. Alguns estão cautelosos e fazendo o processo. Outros ainda resistem. Mas cada pessoa tem o seu tempo e o seu caminho.

Também nos vimos necessitados de imergir em nossos lares, na relação familiar ou até mesmo na solidão, para quem mora sozinho, com a exigência de muita serenidade e capacidade de resiliência. É o desafio de nos reinventarmos no cotidiano dentro das nossas casas. É o inverno nas nossas vidas que exige certa criatividade. A aliança outono (despojamento) e inverno (mergulho interior) poderão nos fazer um bem tremendo. Vivamos este tempo como tempo de graça e possibilidade de mudança, o nosso deserto. O nosso deserto será o que marcou a trajetória libertadora do povo de Deus (Ex 15, 22); que suscitou João Batista conclamando o povo à conversão (Mc 1,4); que foi determinante na opção Jesus de ser fiel ao projeto do Pai (Mt 4, 1ss).  É também possibilidade de um novo olhar para as pessoas que amamos e fazem parte da nossa vida.  

Na perspectiva econômica estamos percebendo algumas leituras de sociedade muito preocupantes. Alguns setores querem a todo custo salvar o “mercado” mesmo subjugando vidas e dignidades. Neste caso cabe recordar o princípio da vida humana como dom maior. Nenhuma instituição social ou econômica está acima da vida. Se precisamos ficar em quarentena para garantir a integridade da vida da maioria dos brasileiros, façamos este esforço porque ele vale a pena. Empresas, dinheiro e capital podem ser recuperados. Contudo, a vida humana que se perde não se recupera mais. Ajuda na reflexão o escrito do Papa Francisco: “a dignidade de cada pessoa humana e o bem comum são questões que deveriam estruturar toda a política econômica” (EG 203). Afirma ainda: “não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado (...) a economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno, como quando se pretende aumentar a rentabilidade reduzindo o mercado de trabalho e criando assim novos excluídos” (EG 204). É hora de explicitar o compromisso com o bem comum e não fomentar o egoísmo e a preocupação apenas com as finanças.  

Outra percepção: tem se explicitado leituras diferenciadas sobre o papel do Estado nestes tempos de crise. A quem o Estado deve proteger? Até então assistíamos o transitar tranquilo de um Estado de acepção neoliberal atropelando direitos e conquistas sociais em nome do fluir do mercado. Já no início da crise da “corona vírus” tentou-se garantir este princípio. Felizmente a sociedade reagiu e tem se assistido uma disputa de versões sobre esta questão. Para alguns deve-se salvar o mercado e não as vidas. Frente a esta perversão social desponta a árdua tarefa de uma grande orquestração social que possa garantir o mínimo de equidade e justiça social. É tarefa do Estado, dialogando com a sociedade civil, garantir este processo.

Último ponto de partilha: Certamente esta crise está provocando uma revisão do agir em sociedade. Temos ouvido falar de tantos gestos de partilha e solidariedade em vista de preocupação com os mais frágeis da sociedade. Vamos potencializar estes gestos porque a solidariedade é parte da espiritualidade cristã e prioriza a vida acima de tudo (Jo 10,10).

Rogamos que deste momento de crise surja uma nova sociedade, solidária, justa e cuidadora da vida.  

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