Estamos a algumas
semanas fazendo uma travessia muito difícil devido à pandemia do COVID 19. Esta situação tem apresentado vários desafios
nos levando a refazer algumas leituras
das estruturas da nossa existência. Podemo ler um texto ou visitar um lugar e
não percebemos a novidade da informação ali presente. Um retorno ao texto lido
ou ao lugar visitado poderá apresentar um quadro totalmente novo. Acredito que
estamos vivendo este contexto. E por
isso, uma outra leitura, certamente pode apresentar novidades ou boas
provocações.
A primeira releitura diz respeito à vida humana. Nos últimos dois meses nos damos conta da fragilidade da nossa vida. De fato, ela é um sopro, um suspiro. Pode findar a qualquer momento. Contudo algumas vidas estão mais ameaçadas. Correm um risco maior justamente pelas condições que são dadas para serem conduzidas. Torna-se grande preocupação a situação dos povos indígenas, quilombolas, moradores das periferias e favelas. As condições dadas as estas pessoas as tornam extremamente vulneráveis ao avanço do COVID 19. A ausência dos aparelhos de estado nestes locais, especialmente a distâncias dos centros especializados de cuidado à saúde sustentam tal preocupação. É justa e sinal de grande responsabilidade a orientação dos órgãos competentes recomendando o isolamento social. Quanto menos pessoas atingidas maior êxito no tratamento. Devemos cuidar da nossa vida e da vida das pessoas que amamos. Mas cabe também a responsabilidade com a vida daquelas pessoas em situação de vulnerabilidade social. O respeito com as normas em vigência é uma forma de responsabilidade social, com a nossa vida e a vida dos outros, pois como afirma o Papa Francisco, tudo está interligado.
Também somos convidados a reler o papel do Estado brasileiro. Por Estado compreendemos este aparelho complexo que estrutura a nação brasileira sendo responsável pelo cuidado do território e da sua população. A última legislatura, tanto em nível legislativo, como executivo, tem proposto reformas de índole neoliberal, segundo o princípio de que quanto menos Estado melhor. Pregam o Estado mínimo e as reformas em andamento, em continuidade à legislatura anterior, mostravam isto. Contudo, antes que a pandemia ganhasse força já víamos as lacunas deste projeto. O desemprego não diminuía e a pobreza só aumentava. As consequências da pandemia em termos sociais e econômicos tendem a agravar o quadro. Lembremos o clamor do Papa Francisco: assim como o mandamento “não matar” põe um limite claro para assegurar o valor da vida humana, assim hoje devemos dizer não a uma economia da exclusão e da desigualdade social. Esta economia mata”(EG 53). Então pergunta-se pelas possibilidades do Estado. Qual será o seu grau de intervenção na conjuntura? E nesta intervenção o que vai privilegiar, a economia especulativa financeira ou as vidas ameaçadas? É importante refletirmos o papel do Estado neste contexto.
Outra releitura necessária diz respeito às nossas relações. Temos ouvido algumas reflexões sobre a relação com o tempo e com as pessoas. Para muitos está “sobrando” tempo. Por outro lado estão distante fisicamente das pessoas do círculo de relações. Quanto ao tempo vê-se que de repente a correria cessou. Não se corre mais atrás da máquina. O stress do “ tempo cronológico” cessou. Como estamos “aproveitando” e não “ocupando” este tempo? Também refletimos sobre as relações pessoais. Não estamos mais abraçando, acarinhando, vivendo a proximidade com aqueles que eram próximos pelas relações de amizade, lazer ou trabalho. Realmente sentimos falta disso. O afeto expresso em gestos é característica do ser humano, assim como a convivência social. Infelizmente isto não está acontecendo. Como estamos vivendo esta ausência? Que iniciativas assumimos para suprir a ausência física?
Que possamos reler estas três estruturas da nossa existência. Que ela nos sugira a esperança e o compromisso, pois é nas turbulências que podemos viver os processos de crescimento e transformação pessoal e social. Jesus, o Filho de Deus, que superou a grande tribulação da cruz, disse aos discípulos para não terem o coração perturbado (Jo 14,1) pois havai algo além e mais forte do que aquele contexto. Mantenhamos a esperança e a serenidade e não deixemos de reler as estruturas da nossa vida com espirito cidadão e iluminados pela fé.