Temos a oportunidade
de vivenciarmos mais um mês da Bíblia. Para este ano a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
sugeriu estudo do livro do Deuteronômio. Contudo existem, além desta proposta, caminhos
possíveis dos cristãos se aproximarem da Palavra de Deus. A expressão utilizada
não é feita aleatoriamente. Para os cristãos a Bíblia é a Palavra de Deus
semeada, dita ou espalhada no meio do povo em nome do amor do criador pelo seu
povo. É uma proposta de diálogo, caminho da palavra, mediado pelo amor, um amor
consequente e responsável, que espera pacientemente uma resposta consequente e
responsável de parte de homens e mulheres.
O amor é uma chave de leitura significativa para adentrarmos no texto bíblico. Cabe ler, refletir e rezar as diferentes passagens a partir da lógica do amor de Deus disposto para toda a humanidade.
É possível abrir as portas do primeiro testamento compreendendo que o processo criador narrado no livro do Gênesis foi assumido como um projeto de amor. O amor permitiu a existência da criação e a confiança de delegar ao ser humano a tarefa de zelar e guardar (Gn 2,15) o que havia sido feito e ficado muito bom (Gn 2,31). Avançando um pouco mais nesta trilha amorosa encontraremos o diálogo de amor mediado pela libertação. O povo sofria a escravidão egípcia e Deus, no seu amor, ouviu os clamores, desceu para libertá-los e fazê-los sair daquela situação rumo a terra de onde manava leite e mel (Ex 3, 7ss), o lugar apropriado para se refazerem como povo. Para tanto precisou acompanhá-los no deserto em um processo de purificação social, econômica e religiosa e também de construção das bases de uma nova forma de se viver enquanto povo.
O sonho gestado no deserto durou um pouco mais de dois séculos. As contradições do povo provocaram opções equivocadas e até mesmo a ilusão de um monarca governando em compromisso com o povo. Deus não deixou de alertar sobre o equívoco (1Sm 8, 10-18). Contudo o amor não supõe imposição, mas a explicitação dos processos de vida assim como as consequências. A opção pela monarquia que agravou o rompimento com o projeto de Deus exigiu a mediação dos profetas, homens e mulheres suscitados pelo amor de Deus em vista da recuperação do projeto tribalista gestado no deserto e corrompido pela opção pela monarquia iniciada com Saul (1Sm 10, 1ss), potencializada com Davi e Salomão e continuada por outros reis.
Os profetas dos diferentes séculos eram pessoas imbuídas do amor de Deus denunciando o pecado e propondo outros caminhos. E muitos sentiram na pele os sofrimentos pela ousadia de assumirem como mediadores do amor de Deus (Jr 20, 7-13). Nas manifestações de tantos profetas admoestando o povo vê-se a voz de Deus tentando recuperar o seu povo (Os 11, 1-11). Por traz das palavras de Amós “quero ver o direito brotar como fonte e a justiça como torrente que não seca (Am 5,24) está uma proposta de amor.
O amor de Deus foi pronunciado no tempo do Exílio na Babilônia, através do profeta Isaías que, diante da crise de esperança do povo exiliado, se fez o porta voz da esperança (Is 55, 12-13). Com toda a confiança em Deus afirma que Ele mesmo vai estar na frente reconduzindo seu povo de volta à terra dos antepassados. Seria o novo Êxodo não mais com Moisés, mas com Deus à frente conduzindo o seu povo.
O amor chegou à plenitude na pessoa de Jesus Cristo, o verbo encarnado (Jo 1,1), o filho de Maria e de José, precedido pelo profeta João Batista (Mc 1, 3) que se apresentou à humanidade anunciando o Reino de Deus, convidando à conversão e a seguir o evangelho (cf. Mc 1,15). Na sua peregrinação, desde a Galileia, se colocou ao lado dos pequeninos e empobrecidos, explicitando o amor de Deus dirigido àquela gente, ao ponto de proclamarem que Deus estava visitando o seu povo (Lc 7,16). Não deixava de ensinar, contudo um ensinamento marcado pelo seu compromisso com a vida e a dignidade daquelas pessoas. Quem o ouvia, compreendia suas palavras, se maravilhava (Mc 1,22) e sentia que Deus mesmo estava lhes falando através de Jesus. Jesus agia em plena sintonia com o Pai e não deixava de manifestar este princípio (Jo 8,16). Em sintonia com o Pai convidou todos viverem experiência do amor. Este mandamento partia da certeza de que Deus amou primeiro e a resposta ao amor de Deus passava pelo o amor ao próximo (Lc 10,20). Ele explicitou este compromisso assumindo a cruz pela salvação da humanidade.
Após a morte e ressurreição de Jesus os seguidores, movidos pelo Espírito Santo, começaram a testemunhar a proposta do Reino anunciado por Ele. Este projeto significativo chega até nós através do livro do Atos dos Apóstolos, Cartas Paulinas e Cartas Católicas. Deus se manifestou na pessoa de Jesus e no tempo narrado por estes livros a manifestação se dá na força do Espírito Santo, via testemunho dos primeiros cristãos.
A leitura da Palavra de Deus vai além da apreensão de uma narrativa histórica. Ali está o mistério de Deus revelado a toda a humanidade fundado no amor. A leitura, reflexão e oração permitem à pessoa aproximar-se desse mistério pelo princípio da fé deixando-se amar por Deus e acolhendo em sua vida seus propósitos. Então é, ao mesmo tempo, um alento para o ser humano, como também um caminho de compromisso com o seu plano. Pela leitura da Palavra de Deus temos a oportunidade de adentramos na sua obra amorosa que extrapola a letra, mas a compreende como parte de um projeto maior.
Neste mês de setembro estudaremos o Livro do Deuteronômio, especificamente a passagem expressa em Dt, 15,11 que convida a abrir a mão para o irmão diante da situação de indigência, miséria e pobreza. É uma forma de nos compreendermos como mediadores do amor de Deus no cuidado dos empobrecidos e fragilizados, frutos de uma sociedade que ainda não aprendeu amar plenamente.