Sobre o racismo e a ameaça às vidas negras

Postado por: Ari Antônio dos Reis

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Desde o assassinato de João Alberto Silveira Freitas no Carrefour de Porto Alegre tem se intensificado o debate sobre as consequências do racismo na sociedade brasileira, evidenciado na mortalidade dos negros e negras. O debate é histórico e ganhou força no primeiro semestre por ocasião da morte de Jorge Floyd nos Estados Unidos e do menino João Pedro na cidade de São Gonçalo, no Estado do Rio de Janeiro.

Na esteira da morte de João Alberto foram noticiados vários fatos envolvendo racismo e outras formas de preconceito e discriminação. Os negros (as) sempre sentiram e viveram isso, contudo o advento das redes sociais tem permitido que muitos casos sejam conhecidos e até se constituam prova do dolo. Importa que, para além de notícia, estes casos resultem em punição para os criminosos, como assegura a Constituição Federal no artigo 5º.

No primeiro caso citado, do João Alberto, a morte foi ocasionada pela ação de seguranças privados, contratados pelo estabelecimento comercial. No caso de Jorge Floyd e João Pedro a morte foi fruto de operação das forças públicas de segurança. Contudo, existe uma ligação entre os casos, apesar do distanciamento temporal e geográfico. As vítimas eram negras e foram mortas sem a mínima possibilidade de defesa.

  A morte de João Alberto em Porto Alegre gerou comoção social e permitiu a percepção de uma série de “anormalidades”, que só se tornam visíveis depois de um desastre como é o caso do assassinato de um ser humano. Cito algumas: a falta de preparo das equipes de segurança privadas para lidarem com público em situações adversas; cerceamento no direito de ir e vir em estabelecimentos comerciais, sobretudo dos negros e negras; racismo que se explicita no cotidiano, mas que não é denunciado porque só os negros o sentem e nem sempre têm força para denunciar; racismo como causa da mortalidade dos negros e negras, sobretudo pelas forças policiais. Todos estes fatos sustentam a necessidade de continuarmos gritando “que vidas negras importam sim”.

Além destas ditas “anormalidades” assistimos algumas autoridades públicas afirmando sem o mínimo constrangimento que “não existe racismo no Brasil”. Não sabemos onde habitaram antes, mas se foram eleitos nestas terras certamente moravam aqui. Não conhecem ou não querem conhecer o Brasil. Em contraponto à negação do racismo pelas autoridades nacionais, a Organização das Nações Unidas (ONU) se manifestou e cobrou iniciativas das autoridades competentes e os responsáveis pela segurança e direito dos cidadãos. Cito parte da nota: A violenta morte de João, às vésperas da data em que se comemora o Dia da Consciência Negra no Brasil, é um ato que evidencia as diversas dimensões do racismo e as desigualdades encontradas na estrutura social brasileira. Milhões de negras e negros continuam a ser vítimas de racismo, discriminação racial e intolerância, incluindo as suas formas mais cruéis e violentas. Dados oficiais apontam que a cada 100 homicídios no país, 75 são de pessoas negras. O debate sobre a eliminação do racismo e da discriminação racial é, portanto, urgente e necessário, envolvendo todas e todos os agentes da sociedade, inclusive o setor privado. A proibição da discriminação racial está consagrada em todos os principais instrumentos internacionais de direitos humanos e também na legislação brasileira. A ONU Brasil insta as autoridades brasileiras a garantirem a plena e célere investigação do caso e clama por punição adequada dos responsáveis, por reparação integral a familiares da vítima e pela adoção de medidas que previnam que situações semelhantes se repitam. Convida também toda a sociedade brasileira, a partir da Campanha Vidas Negras, a participar ativamente da construção de uma sociedade igualitária e livre do racismo.

O racismo é uma triste realidade neste país desde a chegada dos primeiros negros (as) e está profundamente ligado ao regime escravagista que durou quase três séculos. Com o final do regime escravagista ficou o racismo e o preconceito. Estes têm interferido na qualidade de vida dos negros pela ausência das condições mínimas de sobrevivência e têm também, o que é grave, matado muitos negros. A letalidade dos negros vem de diferentes formas, mas a principal é a violência. São fenômenos presentes nas nossas relações cotidianas.  Em alguns casos, geram certa comoção provocando o debate. Mas este debate deve gerar mudanças e estas devem ser estruturais, porque a sociedade é estruturalmente racista que historicamente tem tirado dos negros do direito de viverem com dignidade. O racismo foi construído ao longo da história, perpassa as relações institucionais e a estrutura de Estado. É necessário a determinação para desconstruí-lo porque tem revelado a sua face mais perversa, a morte de pessoas negras. 

É urgente a tomada de consciência de que vivemos em uma sociedade racista e este racismo não só ofende o mais profundo da dignidade humana criada à imagem e semelhança de Deus (cf. DAp 533), como é uma ameaça à vida do povo negro. Lembremos que o racismo tem sido letal há muito tempo e não pode continuar pautando as relações sociais. Finalizando lembremos o pronunciamento do Papa Francisco que diz: não podemos tolerar ou fechar os olhos ao racismo e à exclusão de qualquer forma e, no entanto, pretendemos defender a santidade da vida humana. Todas as vidas têm valor perante Deus. Contudo as vidas negras encontram-se ameaçadas. Precisamos preservá-las.

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