Temos experimentado,
nos últimos meses, as consequências da proliferação da pandemia da Covid-19 que
assola o Brasil desde março de 2020. As unidades de saúde e os hospitais
continuam atendendo com capacidade máxima. Os óbitos continuam aumentando,
marcando de uma forma muito dura as estruturas familiares.
Ainda estamos em uma travessia temporal caracterizada pela enfermidade, medo, luto, insegurança e uma grande confusão quanto às formas de enfrentamento preventivo, agir social e opções terapêuticas. A entrada de ideologias e partidarismos no debate sobre os melhores caminhos para a solução do problema agravou a situação. Colocaram-se, acima da necessidade da articulação organizada para o enfrentamento da pandemia, opiniões nem sempre embasadas cientificamente e preocupadas com o bem comum.
Nesse contexto, os dados econômicos e sociais têm revelado um cenário preocupante, o aumento da desigualdade social. No início da pandemia fomos surpreendidos pelo número de pessoas que tentaram acessar o Auxílio Emergencial. A busca revelou que já existia um grande percentual de pessoas em situação de pobreza ainda antes da vigência da pandemia, fruto do desemprego e da limitação das ações de proteção social por parte do Governo Federal.
A chegada e permanência da pandemia agravou esta situação de desigualdade social, histórica no país. Como o emprego e renda são a melhor forma de inserção social e garantia de sobrevivência, a queda nas ofertas de trabalho tem afetado a base social brasileira. Os pobres sobrevivem a partir do emprego da sua força de trabalho. A pessoa, não podendo trabalhar e ganhar renda, tem sérias dificuldades para sobreviver com dignidade. A perda do emprego ao longo da pandemia, quando muitos estabelecimentos de pequeno e médio porte encerraram suas atividades, afetou os brasileiros mais pobres que trabalhavam nestes lugares.
Seguiu-se o princípio, sem trabalho, sem renda. Com isso, a desigualdade de renda subiu vertiginosamente. Segundo levantamento do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas – FGV, este fenômeno alcançou um recorde histórico no primeiro semestre de 2021. As famílias que dependem da força de trabalho dos seus membros para sobreviver vivem serias dificuldades, pois têm nos seus quadros pessoas desempregadas. A renda que não entra, devido à situação de desemprego, falta para o pagamento de aluguel, água, luz e outras despesas. Em alguns casos a renda aferida não é suficiente nem para colocar a alimentação básica na mesa.
Quando se fala em renda familiar considera-se, segundo o estudo da FGV, a renda recebida do trabalho, dividida por todos os integrantes da família. Uma pessoa desempregada no círculo familiar implica na segurança financeira de toda família. Segundo a FGV, a perda de ocupação renumerada foi a principal responsável pela queda do poder de compra dos brasileiros, que já vinha acontecendo antes da pandemia e se agravou no cenário presente.
A falta de trabalho, aliada ao sucateamento ou suspensão dos processos de proteção social, tende a empurrar mais pessoas para a situação de miséria e pobreza. Será necessário um amplo processo de recuperação econômica e social para que se chegue nos patamares anteriores que não eram tão alvissareiros, entretanto não deixavam tantas pessoas próximas da linha da pobreza.
Esse alerta, feito pelos diferentes institutos de pesquisa econômica, coloca para a nação a necessidade de repensar a matriz econômica. Um sistema econômico que se mantém sobre a desigualdade social jamais será justo. Em 1968 o Documento de Medellín, fruto da II Conferência do Episcopado Latino-Americano, já alertava quanto à situação ao afirmar que a miséria, como fato coletivo, se qualifica como injustiça que clama aos céus (cf. DM, 9).
Mais recentemente o Papa Francisco tem escrito sobre a preocupação com a realidade de pobreza e miséria, fruto da desigualdade social que, no seu extremo, tem gerado uma população de resíduos ou sobras de um sistema econômico alicerçado na desigualdade (EG 53). Alerta para a oportunidade de todo o cidadão ter um emprego e um salário que permitam alimentar-se corretamente pois, segundo ele, “escandaliza-nos o fato de saber que existe alimento suficiente para todos e que a fome se deve à má repartição dos bens e da renda” (EG 191).
Esse direito é o primeiro passo. Existem outras superações que só serão possíveis com a decisão de se enfrentar realmente a desigualdade social porque, segundo o Papa, não se fala apenas de garantir comida ou um decoroso sustento para todos, mas prosperidade e civilização em seus múltiplos aspectos. Isso engloba educação, acesso aos cuidados de saúde e especialmente trabalho, porque, no trabalho livre, criativo e participativo e solidário, o ser humano exprime e engrandece a dignidade de sua vida (cf. EG 192).
É compromisso de fé estarmos atentos a esse contexto. Aquele que veio ao mundo para que todos tivessem vida em abundância (Jo 10,10) convida a fazermo-nos aliados daqueles que têm sua sobrevivência ameaçada pela situação de pobreza e miséria, frutos da desigualdade econômica e social. O discipulado de Jesus requer esta atenção, porque “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (GS 1).
Não fujamos desse compromisso. Ele não é ideológico ou partidário. É compromisso de fé dos batizados.