Qual é o nosso lugar de fala? Falar pelo outro, de certa forma, reproduz as estruturas patriarcais de poder e opressão, sem oferecer um espaço para que se possa falar, e especialmente, que possa ser ouvida.
Diante da preocupação mundial com as mulheres no Afeganistão após a tomada do poder pelo Talibã, um porta-voz do grupo fundamentalista disse que estão “comprometidos com os direitos das mulheres sob a Sharia.
E, o que é a Sharia? É “o caminho claro para a água”. A Sharia é o sistema jurídico do Islã, sendo um conjunto de normas derivadas do Corão, de falas e condutas do profeta Maomé, e que serve como diretriz para os muçulmanos se conduzir, incluindo orações diárias, jejum, doações aos pobres, dispondo sobre direito de família, negócios, finanças. Contém determinações punitivas aos crimes de roubo, que pode até ser punido com a amputação da mão do condenado, até o adultério, que pode levar à pena de morte por apedrejamento à mulher adúltera. Ressalve-se – à mulher adúltera. O Talibã governou o Afeganistão num período de 5 anos, entre 1996 e 2001, quando foi retirado do poder por uma junta militar liderada pelos Estados Unidos. Nesse período, a interpretação à Sharia foi a de maior rigor e violenta do mundo, obrigando homens a deixarem a barba crescer e mulheres não podiam trabalhar, estudar ou saírem às ruas sem a permissão por escrito dos homens, sendo obrigadas ao uso da burca, cobrindo-lhes inteiramente o corpo, cabeça e rosto.
Vivemos em um Estado laico, livre dos dogmas da religião e que o Estado se abstém de patrocinar qualquer religião. A Constituição Federal garante como direito fundamental a liberdade religiosa, que compreende três liberdades: a liberdade de crença, a liberdade de culto e a liberdade de organização religiosa.
Importante também trazer a distinção entre liberdade religiosa e liberdade de consciência, e que não se confunde com a de crença, pois o homem pode determinar-se por não ter crença, protegendo-se assim os ateus e agnósticos, e ainda, a liberdade de consciência pode se determinar pela adesão de valores morais e espirituais que não estejam atrelados à qualquer religião.
É inegável as forças sociais e políticas que as religiões exercem e formam adeptos para determinados programas de valores com regras morais, crenças e consciência, mas o Estado brasileiro é laico e, por essa fundamental garantia, não pode aceitar nenhuma religião específica para que todos sejam igualmente protegidos em suas liberdades, inclusive àqueles que não professam religião alguma.
Desse prisma avançamos para a liberdade ás diferenças, para a igualdade e respeito à todos e à todas. A globalização nos conduziu para o avanço do multiculturalismo. Direito à tolerância. E a tolerância não significa tão só permitir a existência de algo estranho em algum lugar. Também não significa colocar o que é estranho em planos terciários, trazendo-nos para o que nos confere identidade o plano primário. Significa sim ter o elemento estranho, ou seja, a aceitação da diferença, da cultura oriental, da cultura afegã. Considerar que a cultura afegã deve ser rechaçada e que toda mulher afegã é submissa e deve haver intervenção ocidental na cultura e religião muçulmana é deixar de reconhecer e de respeitar as diferenças étnicas religiosas.
O que quero aqui trazer com clareza é que o respeito às mulheres afegãs que vivem sob a Sharia merece ser conferido pelo fato de que o espaço em que falo aqui, e posso ser ouvida, é o da cultura ocidental e constitucionalmente garantida no Brasil em garantias de liberdades fundamentais, ao passo que essas mulheres podem querer estar em situação diferente da que desejaríamos para elas. É desconfortante pensar assim, mas também é imprescindível que ocorra o espaço de fala das mulheres afegãs quanto ao que realmente desejam e necessitam e que os organismos internacionais (ONU) estejam atentos para auxiliarem e agirem em defesa dos direitos humanos. A dignidade das mulheres não poderá ser relegada frente às disputas de poder. Rechaçar a cultura e crença à Sharia e ao Corão é tão violento quanto exigir que tais dogmas o sejam aplicados em veemência com absoluto fundamentalismo. Há que se ter espaço para fala e para serem ouvidas, em respeito aos Direitos Humanos e respeito às diferenças étnicas e religiosas.
Janaína Leite Portella
Advogada, Professora universitária,
Empresária e Vereadora
janaina@leiteportellaadvogados.com.br