O atual contexto brasileiro apresenta três informações preocupantes porque os assuntos referidos ensejam o questionamento sobre a preocupação com a dignidade da pessoa humana nos processos construídos nessa sociedade.
Primeira informação: infelizmente, já batemos a casa dos mais de seiscentos mil mortos por causa da Covid-19. Sabemos que muitas dessas mortes poderiam ser evitadas se houvesse uma orquestração firme e segura quanto aos caminhos de enfrentamento da pandemia. Seguiu-se o negativismo, a desinformação e o aproveitamento da situação pandêmica para cometer ilícitos.
Segunda: o Ministério Público do Trabalho flagrou nas últimas semanas trabalhadores em situação análoga ao trabalho escravo na cidade de Itaitinga, Ceará. Também foi publicada a “lista suja” do trabalho escravo, ou seja, empresas que comprovadamente detinham trabalhadores em regime análogo ao trabalho escravo em diferentes regiões do Brasil. Esta lista é atualizada pelo Ministério do Trabalho a cada ano e os nomes são divulgados somente depois de não caber mais recurso, ou seja, a prática do ilícito é realmente comprovada. As empresas ou empregadores indiciados ficam alijados do acesso ao financiamento público dos seus empreendimentos.
Terceira: a população vulnerável do Brasil está sob o risco da fome que tem como causa o desemprego e a diminuição das atividades econômicas informais por causa da pandemia. Não se acessa o trabalho formal e a atividade informal não tem acontecido por causa das restrições ainda em vigor, diminuindo a renda já volátil dessa parcela da população.
As informações acima elencadas revelam um grande contingente populacional em situação de vulnerabilidade social. O Brasil não vinha bem antes da pandemia. A sua eclosão agravou a situação social e leva a nos perguntarmos sobre as iniciativas que se tomam em vista de garantir uma vida digna para a população brasileira, que não é apenas um dado estatístico. É formada por homens e mulheres reais, que necessitam de condições mínimas de sobrevivência para si e seus familiares. Sobre esta situação o Papa Francisco afirma: “A dignidade da pessoa humana e o bem comum estão acima da tranquilidade de alguns que não querem renunciar aos seus privilégios. Quando esses valores são afetados, é necessária uma voz profética” (EG 218). Essas “pessoas reais” estão com o futuro ameaçado por situações ou mecanismos sociais que ferem a sua dignidade: pobreza, miséria, doenças, desempregos, relações trabalhistas degradantes, entre outras.
Mas não é isso que Jesus, no Evangelho, nos ensina. Lá se diz que o maior e primeiro mandamento é “amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu entendimento! ” (Mt 22,37). Já o segundo, ligado intimamente a esse primeiro, é o de que “amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22,39). Podemos dizer que aqui se condensa toda a doutrina: amar a Deus e ao próximo. O próximo é o caminho para chegar a Deus, inclusive. Essa reflexão bíblica embasa o primeiro e fundamental princípio da Doutrina Social da Igreja: a dignidade inalienável da pessoa humana (CDSI 37; 105). Da relação com Deus compreendemos que a vida humana tem um valor que não pode ser negociado. O Papa Francisco nos ajuda a entender que, a partir do mistério da Trindade, somos impulsionados à comunhão com o próximo, porque fomos criados à imagem dessa Trindade (cf. EG 178), que é a comunhão perfeita.
Toda forma de ataque à vida do ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,27), é também um ataque à doutrina que Jesus ensinou, porque fere a dignidade da pessoa humana. Mesmo que “entre os homens haja justas diferenças, a igual dignidade pessoal postula, no entanto, que se chegue a condições de vida mais humanas e justas” (GS 29). Esse precisa ser o desejo e o projeto de todos os que seguem a Jesus porque, afinal, “o critério para saber se estamos com Jesus é este: quem diz que permanece nele, deve também proceder como ele procedeu” (1Jo 2,5b-6).
A expressão que Jesus usou “eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância” (cf. Jo 10,10), acolhida pelos cristãos, exige igualmente o compromisso com a proteção da vida humana em todas as suas etapas.
No mesmo grau de responsabilidade, urge batalhar para que seja vivida com dignidade até o seu fim natural.
Pe. Ari Antonio dos Reis
Seminarista Renan Paloschi Zanandréa