No próximo dia 28 de janeiro assinala-se no calendário brasileiro o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. A data foi criada em 2009 para homenagear três auditores fiscais do trabalho, e o motorista que os conduzia, assassinados em 2004 durante inspeção para apurar denúncias de trabalho escravo em fazendas da região de Unaí (MG), episódio que ficou conhecido como Chacina de Unaí.
A memória da data convida a refletir sobre os malefícios dos processos escravagistas ao longo da trajetória humana, que ainda não findaram. Tais processos são marcados pela submissão de uma pessoa a outra, relações de dominação, perda da liberdade e perda de autonomia para tomar decisões concernentes a sua vida. Estas características marcaram as diferentes fases do escravagismo. Na antiguidade era uma atividade comum ligada à dívida contraída. A pessoa e, em muitos casos a família, era escravizada até que pagasse a dívida. O livro do Levítico relata a preocupação quanto à escravidão nas relações entre os membros do povo de Deus (Lv 25, 35-54). Vê-se também escravidão como consequência das disputas tribais. O adversário era feito escravo por um tempo e usado como troca por outro prisioneiro. Muitas vezes acabava integrado à tribo adversária.
No advento da modernidade a escravidão adquire grande peso na geração de riquezas e passou a ser exercida em larga escala, justamente pela sua importância econômica. Alcançou seu auge através da captura de milhares de pessoas do continente africano, posteriormente traficados para as diferentes regiões do mundo e destinadas ao exercício laboral, enquanto cativos, nas atividades agrícolas, de mineração, domésticas ou comerciais. Santa Bakhita, cuja memória será celebrada no próximo dia 08 de fevereiro foi vítima desse tipo de prática. Com oito anos de idade foi raptada no Sudão e nunca mais encontrou seus familiares. Só foi libertada quando chegou à Itália, onde não existia mais o escravagismo.
O Brasil por quase três séculos teve sua economia sustentada pelo regime escravagista. Começou com os povos indígenas e não prosperou. Passou-se a escravização dos povos de origem africana. Era uma atividade extremamente rentável pela movimentação comercial externa e interna e também pelo trabalho, primeiramente nos engenhos de cana e posteriormente em outros setores da economia. A resistência dos negros e o esgotamento político do modelo pressionaram a abolição em 1888.
Atualmente está em vigor um modelo de escravidão caracterizado como escravidão contemporânea, refletida na Campanha da Fraternidade de 2014. Na ocasião sustentou-se a ligação profunda entre a escravidão e o tráfico humano. Segundo o texto base da Campanha da Fraternidade a destinação de pessoas para o trabalho escravo era um dos objetivos do tráfico de pessoas, ou tráfico humano (CNBB, 2014. p. 13).
As relações de trabalho são classificadas como “análogas à escravidão” segundo alguns critérios: apreensão dos documentos do trabalhador; impedimento de exercer o direito de ir e vir; jornada exaustiva, condições de trabalho insalubres e sem equipamentos de proteção individual (EPIs) promoção do endividamento, entre outras. O Ministério Público do Trabalho reconhece estas características presentes nas relações de trabalho como análogas à escravidão.
No caso, existe o aprisionamento como no passado, mas geralmente faz-se uma promessa de trabalho para uma pessoa ou grupo em situação de vulnerabilidade social com a promessa de renumeração atrativa e outras garantias, o que nunca se cumpre. A pessoa se desloca do seu lugar de vida e fica à mercê da vontade dos empregadores geralmente com a liberdade cerceada. Acontece tanto nas atividades próprias das áreas rurais, como em atividades urbanas. Normalmente existe um aliciador encarregado de fazer a mediação entre o trabalhador e seus futuros patrões. Seu papel é contratar trabalhadores fazendo uso de falsas promessas (aliciamento), velando a identidade dos patrões.
Esta situação é mais corriqueira do que se imagina. Seguidamente a impressa noticia a comprovação da prática do trabalho escravo nas diferentes regiões do Brasil. As denúncias são muitas e nem sempre se consegue comprovar para punir os culpados. Nos anos de 2016 a 2020 o Ministério Público do Trabalho (MPT) recebeu mais de seis mil denúncias ligadas ao trabalho escravo. Em 2019 cerca de 900 trabalhadores resgatados de situações análogas ao trabalho escravo (Fonte: Agencia Brasil).
Uma iniciativa significativa tem ajudado. É a publicação da “lista suja do trabalho escravo”, ou seja, o nome de empresas e pessoas que comprovadamente adotam esta forma de exploração nas suas atividades. Mais do que a publicidade a lista impede que tais empresas e pessoas acessem qualquer tipo de incentivo econômico do governo. Contudo, é preciso avançar e continuar criando mecanismos legais que inibam a prática.
A dignidade da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus, está no centro de qualquer atividade econômica. O trabalho é constitutivo da dignidade humana. Tal dom, voltado à interação social e à sobrevivência humana, não pode ser marcado por situações que degradam a dignidade da pessoa impedindo a sua realização pessoal.
Ao mesmo tempo em que se assinala esta data significativa no calendário nacional se reafirma o compromisso de cada cidadão para que as relações de trabalho não sejam causa de degradação humana, mas de construção de dignidade e igualdade.
Pe. Ari Antonio dos Reis