Foi lançado recentemente um filme denominado “Dona Pureza”. Não é um filme de ficção ou marcado pela saga aventureira, como se veicula comumente na televisão ou nos cinemas. Também não é uma peça dramatúrgica de alcance internacional tida como uma grande produção. Dona Pureza é um filme brasileiro. Fala do Brasil, da vida real de muitos brasileiros. Apresenta um Brasil profundo, segundo o autor Renato Barbieri, e muitas vezes velado. É um Brasil do qual não temos tanto conhecimento.
A personagem que dá o nome ao filme é uma senhora maranhense, uma mãe preocupada com o filho que saiu em busca de trabalho, para “fazer a vida”, como costuma-se dizer. Seu destino eram os garimpos que pululam na região norte do Brasil. Ela não teve mais notícias do filho e, com a coragem e fé, semelhante à de muitas mulheres brasileiras, saiu em busca daquele que era seu bem mais precioso.
Na jornada dona Pureza encontra-se com uma realidade bem complexa e ela mesmo se envolve em situações reais de desrespeito humano, inclusive ameaçando sua vida. Ela se deparou com a escravidão moderna caracterizada pelo cerceamento do direito de ir e vir; jornada exaustiva, retenção de salário, condições de trabalho insalubres, entre outras irregularidades. Viu também o desmatamento desenfreado, comumente associado ao crime de trabalho escravo. Enfrentou gente poderosa escondida por capitães do mato e jagunços. Encontrou pessoas, que assim como seu filho, saíram de casa para buscar o seu sustento e da família. Submeteram-se àquela situação pela falta de informação e pelo enredamento em uma realidade onde vale a “lei do mais forte”. Recordo então da fala de um rapaz libertado do trabalho escravo. Está veiculada no filme da campanha “de olho aberto para não virar escravo”. Dizia ele: “ninguém sai e deixa a família porque quer; saio porque preciso trabalhar”. E, na busca de trabalho, encontrava a escravidão e a ameaça a sua integridade física e dignidade humana.
Caso Dona Pureza estendesse a sua jornada pelas demais regiões do Brasil, veria outras situações igualmente preocupantes, próprias de um Brasil profundo, segundo Renato Barbieri, nem sempre analisado com a devida atenção. Ela veria que a escravidão não está só no meio rural, mas também na construção civil, ou na indústria do vestuário, onde são confeccionadas em regime análogo à escravidão roupas de marcas famosas que usamos sem saber como foram fabricadas. E tantas outras atividades econômicas que se beneficiam do trabalho análogo à escravidão.
Se Dona Pureza chegasse às nossas periferias e favelas descobriria que, para muitos, o chegar vivo ao fim do dia, sobretudo a juventude, é motivo de grande alegria. Pode-se morrer de fome, atropelado, vítima de bala perdida com endereço certo, ou de alguma batida das forças de segurança que na procura de criminosos desrespeitam qualquer norma voltada à proteção da população que não é criminosa. Agem não pela inteligência e prevenção ao crime, mas pela tática do confronto, metodologia letal para a população e para os policiais.
Ela poderia também conversar com algumas pessoas que estão há um bom tempo na fila à procura de emprego ou com outras pessoas que já desistiram de procurar uma colocação no mercado formal de trabalho e, agora, sobrevivem de bicos ou na economia informal. Iria se deparar com pessoas em situação de fome, algo que imaginávamos superado. Em um país marcado pelo neoliberalismo só como quem pode comprar comida.
Dona Pureza ficaria surpresa se dialogasse com crianças, adolescentes e jovens. Alguns estão desanimados com a vida escolar. A pandemia agravou tudo. Não tinham os meios eletrônicos necessários para acompanhar as aulas e suas casas não ofereciam as melhores condições. Optaram por deixar a escola. Outros tiveram que buscar emprego para completar a renda familiar. Entre uma renda a mais para a família e uma vida escolar claudicante deixaram a escola.
Estranharia tanta violência nas ruas. Descobriria que esta começa com as atitudes de intolerância individuais que se disseminam pela sociedade. A pessoa não merece respeito porque pensa diferente ou é diferente. Verá que o racismo e o preconceito não fazem parte de um Brasil tão profundo assim, mas estão no cotidiano da escola, dos estádios de futebol, dos restaurantes, das casas comerciais. Muitos não fazem questão alguma de esconder ou velar essas práticas.
Caso tenha coragem de ir ao Congresso Nacional, Assembleias Estaduais ou Câmara de Vereadores escutará argumentações de parlamentares que se elegeram às custas de um discurso raivoso, preconceituoso e nada evangélico mesmo que se digam cristãos. Alguns sustentam e promovem projetos de leis cada vez mais prejudiciais aos pobres em nome de uma pretensa estabilidade econômica. Ouvirá parlamentares que não respeitam normatividade alguma a não ser as voltadas para os seus interesses e do seu grupo. Escutará pessoas eleitas à base do discurso do ódio às minorias. Logo ela que em nome de muito amor deixou a sua casa à procura do filho perdido no mundo.
Dona Pureza andou pelo norte do Brasil a procura do filho. Se andasse por todo o Brasil descobriria muitas outras situações difíceis que se somam à que enfrentou. Todavia Dona Pureza é uma mulher de fé, coragem e esperança. E, estas a fizeram andar em busca do filho. Tenhamos potencializadas estas virtudes de Dona Pureza. Precisamos dela diante do cenário desse Brasil profundo que às vezes não vemos a nossa frente.
Pe. Ari Antonio dos Reis