Domingo passado, dia da Solenidade de Pentecostes, foi noticiado mais um massacre de cristãos na Nigéria. Aconteceu na Igreja de São Francisco Xavier, Owo, Estado de Ondo. Estima-se mais de cinquenta mortos. Recentemente celebramos a memória de São Carlos Lwanga e companheiros, martirizados em 1886 na Uganda. Em algumas regiões do Oriente médio a prática cristã não tem sido fácil. Quando o grupo terrorista denominado Estado Islâmico estava fortalecido era comum exibirem imagens de cristãos sendo degolados ou decapitados. Estas notícias tristes que imaginávamos algo do passado, dos primeiros séculos do cristianismo, infelizmente têm se repetido.
Em muitas regiões do mundo não é seguro professar a fé cristã. Esta situação convida-nos a compreender o significado do martyrio na tradição cristã que, como visto, tem perpassado toda a trajetória histórica dos cristãos, com diferentes acentos, contudo sempre como um inequívoco testemunho de fé. Os dicionários afirmam que martyrio é: ser vítima de tormentos e até mesmo a morte em consequência de sua adesão ao compromisso com uma causa ou uma fé religiosa, especialmente a fé cristã.
Nos primeiros séculos do cristianismo o martírio estava associado ao anúncio e testemunho de Jesus Cristo, o primeiro mártir. No evangelho de João Ele expressou a sua vontade, dar a vida por todos (Jo 10,11; 15,13). Assumiu-se como o servo sofredor, que deu a sua vida pela salvação de todos e nisto foi glorificado por Deus (Fil 2, 7-9). Enfrentou corajosamente a cruz e fez dela não símbolo da vida que finda, mas da vida doada por amor. Afinal, Ele amou-nos até o fim. Ressuscitado impulsiona o anúncio do evangelho a todos os povos e culturas, começando por Jerusalém.
A comunidade cristã que se estruturou após a morte e ressurreição de Jesus não fugiu às consequências do anúncio seguindo o pedido do Mestre. Muitas vezes o anúncio foi feito em situações de hostilidade e ameaça à vida (At 5,40). O martírio tornava crível e consequente o testemunho dado em vista de uma causa maior. O testemunho é fundamental na fé cristã e este testemunho é dado, muitas vezes em condições adversas. Recorda-se assim o primeiro mártir assinalado no calendário litúrgico, Santo Estevão. Corajosamente ele testemunhou a proposta de Jesus e enfrentou a morte por ela (At 7, 59-60). No martírio de Estevão, de fato, a violência é derrotada pelo amor, a morte pela vida: ele, no momento do testemunho supremo, contempla o céu e oferece o seu perdão aos seus perseguidores” (Papa Francisco). Ainda nos primeiros séculos da era cristã outros homens e mulheres, testemunhos fieis de Jesus Cristo, sofreram o martírio. Foram pessoas de fé inabalável que alvejaram suas roupas no sangue do cordeiro e se encontram diante do trono de Deus (Ap 7, 9-13).
Os mártires doaram a sua vida por amor. O testemunho pessoal é posteriormente reconhecido pela comunidade de fé porque é impulso para a continuidade da missão cristã., como já afirmado, mesmo em condições de grande adversidade. O martírio é lido sob a luz da fé eclesial, como atesta o prefácio dos mártires: pelos mártires que confessaram o vosso nome e derramou seu sangue como Cristo, manifestais vosso admirável poder. Vossa misericórdia sustenta a fragilidade humana e nos dá coragem para sermos as testemunhas de Jesus Cristo, vosso filho e Senhor nosso (MR). Vê-se o aspecto cristológico, eclesiológico e testemunhal do martírio. Cristológico porque se fundamenta na ação do Filho de Deus, a grande referência para a ação cristã. Eclesiológico porque é fruto de uma vida eclesial se inspirando nela e inspirando outros irmãos na fé; o martírio pode ser pessoal, mas é grande força eclesial. Testemunhal porque faz-se sinal para outros cristãos e alento naquilo que podem fazer. Estes três elementos fazem do martírio ao longo dos séculos a “santa loucura” que ajuda impulsionar a fé cristã. Vê-se que estes se prolongaram ao longo dos séculos da caminhada cristã.
A consolidação da fé cristã através da atividade missionária não eliminou o martírio. Nas diferentes regiões do mundo a proclamação da fé cristã ainda significa ameaça para a pessoa ou comunidade que a professa. O massacre na Nigéria é um exemplo desta condição. Também os compromissos que emergem da fé cristã, não desligados da primeira dimensão, geram martírio. Exemplifico com o testemunho de São Maximiliano Kolbe (1894-1941) preso e morto pelo regime nazista. Ofereceu-se para morrer no lugar de um pai de família também preso no campo de concentração de Auschwitz. Também São Oscar Romero (1917-1980), mais recentemente, que morreu presidindo a eucaristia porque colocou-se na defesa dos pobres em El Salvador. Ambos, martirizados em épocas e condições diferenciadas, se expressaram pelo amor viabilizado no compromisso em defesa da vida. Seus adversários se expressaram pelo ódio ao ponto de buscarem a morte. É o martírio ligado à profecia. Morreu o corpo mas ficou o testemunho e este é semente de vida cristã que se refaz na força do ressuscitado e na inspiração do Espírito Santo. E nós somos chamados a viver a comunhão com estes homens e mulheres buscando a graça de uma vida de fé consequente segundo o evangelho de Jesus Cristo. Quando a comunidade segue os passos de seu Mestre, vai sofrer perseguições, vai ter dificuldades, vai vivenciar noites de tormentas, mas Deus é maior que tudo isso.
Os mártires de ontem e hoje ajudam a Igreja a oferecer ao mundo um amor maior que dá sentido a existência humana e a vida de fé. Qualquer oferta contrária a essa premissa é contra a fé cristã. Ao final, acolherão as palavras do salvador porque a vida que doada teve sentido: vinde benditos de meu Pai, tomai posse do Reino preparado para vós desde o princípio do mundo (Mt 25,34).
Pe. Ari Antonio dos Reis