Gritar, quem nunca? “Ergue-te alma campeira num missal de sentimento. Dai-nos paz, direito à terra donde brota o firmamento e abençoe este gaúcho engarupado no vento” versa Regis Marques, artista gaúcho, que entoa, ademais, com o Grupo Rodeio, a canção “Gritos de Liberdade” como “o brado terrunho do punho farrapo”. Outrossim, o norueguês Edvard Munch (1893) é responsável por uma série de quatro pinturas, nominada “O Grito” (Skrik), na qual representa a figura andrógina expressando profunda angústia e desespero. O Grito registra-se dentre as obras mais importantes do movimento expressionista, com alcunha de ícone cultural.
Bicentenário
no Brasil, o “Grito de Independência”, às margens do Ipiranga, é versado por
Francisco Manuel da Silva como Hino Nacional: “Ouviram
do Ipiranga as margens plácidas
de um povo heróico o brado retumbante”. Há
outros gritos? Muitas são as vozes a bradar neste “Gigante pela própria
natureza... florão da América, iluminado ao
sol do Novo Mundo!” Hodiernamente, enquanto cidadãos brasileiros(as), bradamos
juntos(as) alegrias e esperanças, tristezas e angústias (cf. Gaudium et
Spes, n. 1). Qual seria o grito das juventudes?
A 6ª Semana Social Brasileira (SSB) grita através do “Mutirão pela vida: por terra, teto e trabalho” na esperança profética de, em todo território nacional e, quiçá, além fronteiras, construir uma “realidade melhor para os povos excluídos e marginalizados”. As Pastorais da Juventude (PJ’s), a saber, gritam pela vida das companheiras e das juventudes: “Campanha Nacional de Enfrentamento aos ciclos de violência contra a Mulher” (2017-2019 e 2020-2023); “Campanha Nacional Contra a Violência e Extermínio de Jovens” (2008...2013-2016). Neste caminhar coletivo articula-se uma grande ciranda pela defesa da vida das juventudes que segue a cantar: “vamos juntos gritar, girar o mundo. Chega de violência e extermínio de jovens!” Por quê? Para fazer ecoar outro grito: “a juventude quer viver!”
Durante o discurso inaugural da Conferência de Aparecida, em 2007, Bento XVI, bradou que “a Igreja é advogada da justiça e dos pobres, exatamente por não se identificar com os políticos nem com os interesses de partido”. Papa Francisco pondera que “a política é um meio fundamental para construir a cidadania e as obras do homem, mas, quando aqueles que a exercem não a vivem como serviço à coletividade humana, pode tornar-se instrumento de opressão, marginalização e até destruição [...]. Se for implementada no respeito fundamental pela vida, a liberdade e a dignidade das pessoas, a política pode tornar-se verdadeiramente uma forma eminente de caridade”. O construto eleitoral brasileiro, então, tem ímpar oportunidade de reverberar àquele constante grito à Democracia e à Boa Política!
A 59ª Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) exclamou com voz forte: “nossa fé comporta exigências éticas que se traduzem em compaixão e solidariedade concretas. O compromisso com a promoção, o cuidado e a defesa da vida, desde a concepção até o seu término natural, bem como, da família, da ecologia integral e do estado democrático de direito estão intrinsicamente vinculados à nossa missão apostólica [...]. Nosso País está envolto numa complexa e sistêmica crise, que escancara a desigualdade estrutural, historicamente enraizada na sociedade brasileira [...]. Nossa jovem democracia precisa ser protegida, por meio de amplo pacto nacional [...]. Ao comemorarmos o bicentenário da Independência do Brasil, é fundamental ter presente que somos uma nação marcada por riquezas e potencialidades, contudo, carente de um projeto de desenvolvimento humano, integral e sustentável”.
Ora, “Vida em Primeiro Lugar” é o grito permanente das pastorais e organizações populares brasileiras que ao questionarem-se “que país queremos construir?” objetivam: “motivar e incentivar a criação de espaços de debate, formação, construção da unidade e reflexão”; “animar a mobilização de comunidades e grupos excluídos/as dos direitos básicos à participação e transformação”; “promover espaços presenciais, virtuais, ou ainda de forma híbrida para a socialização de saberes e lutas, animar e alimentar sonhos e esperanças”; “defender o acesso à terra, teto e trabalho, seja no campo ou na cidade”; “resistir e ocupar os espaços públicos”; e “garantir o sagrado direito de estar nas ruas e praças e de se manifestar, com os cuidados sanitários necessários”. Quais seriam os meios possíveis?
Há 28 anos protagoniza-se o “Grito dos(as) Excluídos(as)” em célebre data – 07 de setembro – como compromisso com a independência a brotar do chão da realidade do povo que, diuturnamente, aos “gritos de liberdade”, edifica caminhos por crer que “Cristo nos libertou para que sejamos verdadeiramente livres” (Gal 5,1). Desta forma, esse “Grito” torna-se memória da experiência do jovem moço de Nazaré que, crucificado, não calou-se ante a injustiça e, assim, nutre utopias concretas a tantas seguidoras e seguidores que, colocando-se a serviço do bem comum, tornaram suas vidas sementes de mais vida para a comunidade humana.
A profética voz, reverberada há quase três décadas, pela articulação, organização e manifestação popular, repleta de simbolismo e historicidade, traduz um processo contínuo de “gritos” clamando por “vida em abundância” (Jo 10,10) ao integrar pessoas, grupos, entidades, igrejas e movimentos sociais comprometidos com a justiça e a fraternidade social, à luz do Evangelho. Compreende um icônico grito em contraponto, real e pacífico, ao Grito de Independência que, mesmo ao silenciar, vocifera à história, pois, timbra o sonido das(os) excluídas(os) e, diga-se: “se eles se calarem, as pedras clamarão” (Lc 19,40).
Nascera, em 1995, para refletir “a vida em primeiro lugar” e, neste 2022, ao questionar “Brasil: 200 anos de (In)dependência. Para quem?” estará presente, aliás, na inspiração da Escola de Samba, carioca, Beija-Flor de Nilópolis que escolhera o “Grito dos Excluídos” para seu enredo carnavalesco 2023, justamente por interrogar os 200 anos da Independência. E, torna, por fim, a inquietante questão acerca dos gritos juvenis que, uma vez interpelada às redes sociais, propusera-se saber: qual é, hoje, o grito da juventude?
Lê-se, dentre as respostas, que almeja-se gritar por “justiça social” (Carleane, 24 anos), “acolhimento das diferenças, de cada jeito de ser, nos diversos espaços de participação” (Cristine, 25 anos), “por uma sociedade melhor, onde todos possam ser aquilo que tanto desejam” (Morgana, 14 anos), “pelo direito a educação de qualidade para todos, saúde, moradia, trabalho e cultura” (Ana Laura, 31 anos); “pela paz e por uma sociedade em que se possa viver de maneira abundante e sem medo” (André, 24 anos). Há, ainda, o “grito por mais oportunidades aos jovens e para que os direitos a diversidade e a igualdade sejam respeitados” (Tailla, 18 anos).
Concluo, e grito pela vida das juventudes, parafraseando Frei Betto: “o grito dos excluídos ecoa neste bicentenário da independência. Ecoa na contramão dos caminhos que restauram o passado, traçados por aqueles que ainda incensam a ditadura e reforçam o apartheid social. Ecoa indignado frente à avalanche de corrupção que ameaça nossa frágil democracia. Ecoa do peito daqueles que exigem o direito dos pobres acima da ganância dos credores. Ecoa do clamor por ética na política, transparência nos poderes da República e severa punição aos que traíram os anseios do povo, inoculando-nos o medo de ter esperanças” (Frei Betto, Gritos de Independência).
Padre Leandro de Mello – @padreleojuventude. Passo Fundo, 06 09 2022.