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Na solidão das livrarias

Repercutimos,
nesta coluna semanal, uma interessante crônica escrita pelo escritor Nelceu
Alberto Zanatta. O autor retrata corajosamente um fenômeno atual, observado num
shopping de nossa cidade: o abandono ou a baixa procura de pessoas por
livrarias. Por que abandonamos os livros? Porque os livros deixaram de ser uma
boa companhia ou a cura dos males de nossas almas?

Recomendamos leitura
desta inteligente e sábia crônica, publicada no site www.neipies.com

***

“O dia estava lindo,
véspera de feriado, clima perfeito para uma prévia de um descanso programado em
mais um final de semana tedioso com esquinas e ruas tomadas, gentes pelas
calçadas, carros que ameaçam a todos, ratos que correm pelo meio-fio, sorrisos
apressados, promessas de alegria.

Olho pelo ângulo de uma
árvore formosa que estava ali, quase gigante, mas que fora cortada em pedaços para
dar lugar a mais uma farmácia, em uma dupla tragédia urbana.

“Corta-se
uma árvore, uma vida.

Nasce
uma loja iluminada

em
seu lugar

para
vender a morte

ou
seu dia adiar.”

Uma típica sexta à tarde,
azulada, nervosa, de pessoas que andam mais rapidamente, sem saber muito
exatamente em que parede sua noite vai topar. Aproximo meus passos cada vez
mais rente ao shopping onde fala-se haver uma grande livraria, a mais sortida,
como diziam alguns antigos, ou, com inúmeros títulos, em linguagem de anteontem.

Quantos
carros!

Cada metro é disputado
por esses casulos ambulantes, cada pessoa com o seu, como se fossem a roupa de
cada um, colorida, de aparência duvidosa, e o seu mundo buscando estacionar no
seu riscado. Pensei que teria problemas com o excesso de pedestres, logo à
entrada, onde tive a certeza de que parques e espaços verdes estão em declínio abissal
por aqui. Toda a cidade veio ao shopping.

“Corredores e lojas
cheias de todos, pizzarias e lanchonetes ocupando cada meio metro possível
nesta caverna moderna”, pensei… Caminho um pouco mais, vejo a capa de um
livro cobiçado, pergunto seu preço e sumo. “Volto na segunda – pensei – quando
a realidade será imposta a todos estes consumidores distraídos”.

Mas não.  Alcanço a livraria em minutos, e, surpresa: vazia!

– Não creio! – resmunguei
baixinho.

“Quanta
gente vem pra cá…

Como,

tantos
a gastar,

comer
e mostrar,

e
ninguém a pensar?”

A atendente pula em minha
direção em uma reação dúbia. De alegria intensa, mas, ao mesmo tempo, surpresa:
“Um cliente… Nossa!” – Sabe-se lá quanto tempo não via um deles. Ela falava,
mas de canto de olhos via seus colegas a esmo, pelas colunas da sala.
Disfarçados, entediados, por horas e horas em pé, sem alguém para oferecer o Escravidão, do Laurentino; Ikigai, do Ken Mogi; ou mesmo A Vida dos Doze Césares, do Suetônio. E
centenas de outros e mais outros…

De que falam mesmo os
vendedores de livros enquanto seus clientes não chegam? Falam com os próprios livros,
suas esperas e histórias? Não pode haver maior solidão do que uma livraria
vazia cercada de gente por todos os corredores. A história adormecida em pilhas
de obras não vendidas.

Nos hospitais, pelo menos,
temos de aguardar os horários para sermos medicados. Em rodoviárias, temos de
aguardar as chegadas de ônibus para que sejam anunciadas suas partidas. Em
velórios, aguardamos a última lágrima para então sair da presença assustadora
da dor humana que restou…

Em livrarias, todavia, a
cura pode acontecer em segundos. É abrir o capítulo certo, a página perfeita, e
a esperança se tornar manifesta. Não há espera que não possa ser desfeita nem
resposta que se abstenha diante de um pretenso leitor curioso. Nada pode ser
adiado, sequer o desejo de abrir o último romance e ler algumas linhas, apenas.
Sentar-se, descansar os olhos, imaginar um viajante que não chega nunca… como
este.

“Não
sinto mais cheiro de nada.

Neste
caminho estrangeiro que leva à minha casa,

nem
mais composto de meus sonhos, apenas de mim.

Vou
caminhando muitos passos, um de cada,

e
estou andando há horas, na escuridão do dia, sem começo ou fim.

Nada
mais humano, nem divino, nada sobre nada.

Sequer
os raios me atingem, meu andar trôpego espia,

margaridas
me seguem, crisântemos, fadas.

E
o tempo que some, sombras se escondem, é o pio da noite, diria”.

Em
que loja de calçados poderemos encontrar este presente? Quais farmácias nos
dariam este calmante? Mas elas estão lotadas. Suas prateleiras mal suportam
tantas promessas em suas caixas de alívio.

E as livrarias, que
oferecem gotas de felicidade em suas poções mágicas de cura e de bálsamo, de
contos e histórias, essas continuam vazias. Não as farmácias, mas elas mesmas
poderiam receber receituários para poder vender seus livros. 

– Doutor, estou com
vertigem.

– Tome a receita, vá e mergulhe
com Alberto Caeiro.

– Doutor, tenho muitas
dores pela manhã, logo ao despertar.

– Pronto, dose única: Manuel
de Barros. Até o meio-dia, leia alternadamente.

É inaceitável o que se
vê!

Estamos buscando nos
shoppings desvios mais rápidos que nos satisfaçam, e saindo deles ainda mais
vazios. Nossos passos nos apressam para que compremos mais e mais, e, em
seguida, frequentemos as farmácias como se fossem pequenos free shopps para alívio
e consolo das solidões que nós mesmos construímos.

Não
seria mais simples irmos à essência? Logo após um lanche, misturar ao café
Fernando Pessoa, adoçando lentamente a xícara com uma colher de açúcar da
Clarisse?

Saio do lugar com a
sensação de que os livros ainda irão se revoltar com todo o nosso descaso.
Livros solitários, abandonados em prateleiras, nunca lembrados ou comprados,
conspirando com outros ao seu lado, confabulando para todos irem às ruas e
baterem os seus compêndios na cabeça dos humanos.

Coleções e avulsos que,
na madrugada, desviam os centuriões modernos e fogem pelas calçadas para bater
nos primeiros que encontram.  Dicionários,
revoltados, gritando pelas esquinas. Romances, contos, biografias, todos indo à
luta para despertar essa gente que caminha feliz em ruas iluminadas – todos,
rigorosamente, a caminho da escuridão.

Então, ficamos assim: para
pequenos enjoos da vida, busque a sua farmácia mais próxima. Se a dor
persistir, corra para uma livraria e peça ao atendente uma solução simples e
duradoura para o seu mal maior: leitura. Entre estantes, silêncio e muitos
livros, é o lugar onde você pode dissolver de imediato suas dores da alma. Ou o
seu vazio.

Mas visite as livrarias
com urgência, porque corre-se o risco de restarem somente farmácias. E, ao
longo de seu labirinto de uma vida sem letras, não há saída que possa ser
encontrada”.

Autor:
Nelceu Alberto Zanatta, autor do livro As plantas, suas folhas e um sino.

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FONTE:
https://www.neipies.com/na-solidao-das-livrarias/

 

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