Repercutimos, nesta coluna semanal, uma instigante
reflexão do professor Telmo Marcon, da UPF (Universidade de Passo Fundo) que
aborda, a partir do autor sul-coreano Byung-Chul Han, sobre os impactos
das tecnologias nas subjetividades e nas interações sociais.
Esta
reflexão está publicada no site www.neipies.com, na data
de 03/11/2023
SEGUE O TEXTO:
***
“Arrastamo-nos
atrás da mídia digital, que, aquém da decisão consciente, transforma
decisivamente nosso comportamento, nossa percepção, nossa sensação, nosso
pensamento, nossa vida em conjunto. Embriagamo-nos hoje em dia da mídia
digital, sem que possamos avaliar inteiramente as consequências dessa embriaguez.
Essa cegueira e a estupidez simultânea a ela constituem a crise atual. (HAN, 2018, p. 10)
“Byung-Chul Han nasceu em Seul, Correia do Sul, em
1959. Migrou para a Alemanha em 1985 onde graduou-se em Filosofia, em
Literatura Alemã e em Teologia. Posteriormente, doutorou-se em Filosofia e,
atualmente, atua como professor de Filosofia e Estudos Culturais na Universidade
de Berlin. É autor de várias obras, mas, para a presente reflexão serão
utilizadas três: Sociedade do Cansaço (2017a); Sociedade da
transparência (2017b); No enxame: perspectivas do digital (2018). A
epigrafe do livro No enxame pauta o problema de fundo que
é objeto das reflexões de Han nessas três obras: os impactos das tecnologias
nas subjetividades e nas interações sociais.
Na obra No enxame (2018) ele diagnostica um
dos problemas gerados pelas mídias (tecnologias) de comunicação digitais que é
o excesso de informação. Consequentemente, desaparece o respeito que pressupõe
um olhar distanciado. Han contrapõe o respeito, derivado de spectare, que
implica em distância epistêmica, ao espetáculo derivado de respectare
que é um ver sem distância. “A comunicação digital desconstrói a distância de
modo generalizado” (2018, p. 12). Daí decorrem problemas como a mistura entre o
espaço público e o privado e a ruptura com hierarquias entre remetente e
destinatário: “todos são simultaneamente remetentes e destinatários,
consumidores e produtores” (2018, p. 16). Ele vai discutir essas ideias mais
detalhadamente na obra Sociedade da transparência (2017a). Uma das
consequências da transparência excessiva é a eliminação da ambivalência. “O
tempo transparente é um tempo sem destino e sem evento” (2017a, p. 10). Tudo
isso gera uma sociedade cansada (2017b).
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Han observa
que vivemos numa sociedade com um excesso de positividade. Qual o fundamento
dessa crítica?
Ele parte do princípio e do papel da negatividade na
dialética hegeliana de que nos movemos pela negatividade, ou seja, é a negação
que nos faz avançar. A negação, numa perspectiva dialética, é fundamental
porque é ela que nos move a sair do lugar, da mesmice. Em palavras mais
simples, a positividade acomoda porque traz respostas e não indaga e nem estranha,
condições que nos fazem sair do lugar e pensar em utopias, ou seja, em outras possibilidades.
Como observa Han, “transparência e verdade não são
idênticas. A verdade é uma negatividade na medida em que se põe e impõe,
declarando tudo o mais com falso”. Nessa perspectiva, não é o acúmulo de
informação em si que produz verdade. “A hiperinformação e a hipercomunicação gera
precisamente a falta de verdade, sim,
a falta de ser. Mais informação e
mais comunicação não afastam a fundamental falta
de precisão do todo, pelo contrário, intensifica-a ainda mais” (2017a, p.
24-25. Grifos do autor).
O excesso de exposição e de positividade
paralisa a capacidade humana de criar. Tudo isso tem implicações profundas na
vida das pessoas e nas novas formas de sociabilidade.
Em Sociedade do Cansaço Han diagnostica um problema crucial no século
XXI: “visto a partir da perspectiva patológica, o começo do século XXI não é
definido como bacteriológico nem viral, mas neuronal” (2017b, p. 7). Isso quer
dizer que estamos diante de situações novas, distintas daquelas dos séculos
precedentes quando as doenças provocadas por bactérias ou vírus que, por serem
negativas, exigiam reações dos corpos humanos quando atacados.[1]
No contexto atual, ao contrário, “não são infecções, mas enfartos, provocados
não pela negatividade de algo
imunologicamente diverso, mas pelo excesso de positividade” (2017b, p. 8. Grifos do autor). O autor não está negando
a ação de vírus ou bactérias, mas focando no que há de novo: doenças de outras
naturezas que são mais complexas na medida em que não provocam o sujeito a
reagir. Ao contrário, ele aponta para duas consequências que são
características do século XXI: ansiedade e depressão.
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As reflexões de Han ajudam a
compreender o paradoxo que vivemos: de um lado, a fartura de possibilidades de
acesso às informações, muito além de qualquer capacidade humana
individualmente, e, de outro, a angústia crescente pelas dificuldades de assumirmos
a condição de sujeitos criativos frente a tudo o que é disponibilizado. Não
apenas há um excesso de possibilidades, mas elas apassivam as pessoas devido ao
excesso de positividade, ou seja, da ausência de reflexividade.
Em
síntese, para o autor as mídias atuais produzem muito barulho, mas poucas
mobilizações que de fato tenham consistência. Daí sua avaliação de que o enxame
digital consiste em indivíduos atomizados. “Uma alma de massa ou um espírito de
massa falta inteiramente ao enxame digital. Os indivíduos que se juntam em um
enxame não desenvolvem nenhum Nós” (2018, p. 27).
Frente a esse diagnóstico quais as perspectivas
possíveis? É fundamental, diz Han (2017b, p. 74), transformar o cansaço do
esgotamento em um cansaço translúcido que “permite acesso a uma
atenção totalmente distinta, acesso àquelas formas longas e lentas que escapam
à hiper atenção curta e rápida” (2017b, p. 74).
A superação do cansaço depende de experiências
formativas, de reflexões, autorreflexões e reelaborações. Daí a necessidade dos
processos educativos e comunicativos dialógicos pautarem novos pressupostos que
afrontem a economia da eficiência e da aceleração, geradores do cansaço do
esgotamento. Daí o desafio de trazer de volta “ao mundo a admiração”
(2017b, p. 74).
Han (2017b) opõe o cansaço-eu ao cansaço-nós.
O cansaço-eu é fruto do esgotamento de excesso e saturação da sociedade
ativa e do desempenho. É um cansaço que atua individualizando e isolando.
Provoca a incapacidade de ver (contemplação sensível e reflexiva) e mudez
(capacidade de expressar, contrapor e comunicar). Interrompe o diálogo porque é
incapaz tanto de ouvir/ver, como de se expressar. A hiperatividade dos fluxos,
da recepção e do consumo de informação e suas restrições de participação
limitam a ação livre. A violência do cansaço-eu reside, segundo
Han (2017b, p. 71), na capacidade de destruir a ideia de comunidade, o elemento
comum, a proximidade e a própria linguagem e o político como espaço público.
Referências
HAN,
Byung-Chul. Sociedade da transparência. Petrópolis: Vozes, 2017a.
HAN,
Byung-Chul. Sociedade do cansaço. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2017b.
HAN,
Byung-Chul. No enxame: perspectiva do digital. Petrópolis: Vozes, 2018.
Autor: Telmo Marcon, Doutor
em História Social pela PUC de São Paulo, pós-doutorado em Educação
intercultural pela Universidade de Santa Catarina. Professor na graduação e
pesquisador no Programa de Pós-Graduação em Educação (mestrado e doutorado) do
Instituto de Humanidades, ciências, Educação e Criatividade (IHCEC).
[1]
Essa obra de Han foi publicada na Alemanha em 2010, antes da pandemia quando o
vírus voltou a atacar e foi necessário que os corpos humanos, com ajuda das
vacinas, reagissem ao vírus. Hoje, 2023, o vírus da Covid-19 está relativamente
sob controle, mas isso deve-se, em parte, a reação dos corpos à negatividade do
vírus. O mesmo não ocorre com os problemas neurológicos.